Na sexta-feira (14/08) completam-se 200 dias do crime bárbaro que vitimou a família Gonçalves, de Santo André, e os familiares de Romuyuki Veras Gonçalves, de 43 anos, Flaviana Meneses Gonçalves, de 40, e o filho do casal Juan Victor Gonçalves, de 15, mortos no dia 27 de janeiro, ainda custam a entender o que motivou o crime. Para os familiares não foi apenas o dinheiro, que acabou não sendo encontrado, o motivo do triplo assassinato pelo qual são acusados Anaflavia Martins Meneses Gonçalves, de 24 anos, filha do casal e irmã do adolescente; sua companheira Carina Ramos de Abreu, de 26 anos; Juliano Oliveira Ramos Júnior, de 22; Jonathan Fagundes Ramos, de 23 (primos de Carina) e Guilherme Ramos da Silva, de 19 anos, amigo dos quatro. Os cinco foram denunciados pelo Ministério Público como autores do triplo homicídio. Estava prevista para acontecer nesta segunda-feira (10/08) a primeira audiência no Fórum de Santo André sobre o caso, porém, por conta da pandemia da covid-19 a audiência foi redesignada pelo juiz Lucas Tambor Bueno para o dia 22 de setembro, e será feita online. Os acusados, seus advogados e as testemunhas participarão através de videoconferência.
Segundo a denúncia o crime foi planejado com antecedência. A polícia apurou que Carina chegou a fazer uma cotação para a troca do carpete do piso superior da casa da família dando entendimento de que o casal pretendia ficar com a casa. Os cinco acusados teriam feito até reuniões para combinarem o crime. Eles pretendiam ficar com R$ 85 mil que estariam no cofre da casa. As mortes também faziam parte do plano, segundo a denúncia.
Acostumada a lidar com crimes muito violentos, a promotora Thelma Thais Cavarzere elege esse como um dos casos mais violentos de seus 25 anos de carreira no Ministério Público. “Os crimes mais chocantes para mim são aqueles envolvendo crianças, neste período todo três casos me chocaram mais, esse é um deles, um dos mais horrorosos que eu já vi e olha que estou acostumada com desgraças. Esse crime chocou não só a promotoria, mas a sociedade e até a polícia, que pediu uma quantidade gigantesca de exames periciais, como nunca vi”, comentou a promotora.
Thelma acompanhou todo o trabalho da polícia e fez elogios à investigação. Ela também assistiu à reconstituição do crime. Ela relata que teve que se debruçar sobre o caso para a elaboração da denúncia em que aponta os cinco presos como autores do triplo homicídio. “A denúncia ficou bem esclarecida, mas fiquei esgotada, analisei todo o processo, foram cinco volumes, fiquei dois finais de semana trabalhando nela”, relata.
A denúncia é um importante instrumento para o processo. Ela vai ser lida na audiência e é a partir dela, que começam a serem analisadas as provas e oitiva de testemunhas e réus. A promotora considera que os trabalhos desta fase sugerem que sejam realizadas duas ou mais audiências, por conta do número de réus e testemunhas. Só o MP arrolou 17 testemunhas, entre eles o delegado Ronald Quene Justiniano Marques, um dos que trabalhou no caso, investigadores, peritos criminais e pessoas que tinham ligações com as vítimas e acusados, dentre as quais duas testemunhas que estão sob proteção.
A promotoria será representada por outro membro já que o caso foi investigado e apurado pelo DEIC (Delegacia de Investigações Criminais) de São Bernardo, pois o carro incendiado com as vítimas em seu interior foi localizado em uma estrada no bairro do Montanhão, em São Bernardo. Porém o crime teve início na casa da família, no Jardim Irene, em Santo André e portanto o processo corre agora nesta cidade.
Para Diogo Reis, primo de Flaviana, a família tenta encontrar explicações para a tragédia. Ele conta que a tia, Vera Lucia Chagas Conceição, nunca mais voltou a ser como era. “Ela era muito ligada à família. O crime acabou com a vida dela, que vive em uma depressão profunda porque a ligação com eles era muito forte”, comenta. Vera tem morado com Diogo, retorna esporadicamente a Extrema-MG, onde vivia, e o faz para cuidar do esposo doente. Quando está em São Paulo ela vai regularmente à casa da família Gonçalves para limpar e cuidar das plantas. “Num primeiro momento ela foi porque precisava limpar tudo, depois porque ela tem essa ligação, tem a saudade. Ela doou bastante coisa, como alimentos e roupas, o resto ela não pode se desfazer por causa do processo de herança, então ela vai lá para cuidar”.
Durante as idas à casa da família, Vera, encontrou vários bilhetes demonstrando amor de um para o outro, por isso a dificuldade de entender o crime. “A minha tia perdoou de verdade a Anaflavia, mas quer que ela pague pelo que fez. Agora estão proibidas as visitas, mas ela quer visitar a neta, conversar com ela para entender. Dói muito dentro dela o fato da neta ter feito tudo isso”, comenta Diogo.
O advogado da família Epaminondas Gomes, que atua como assistente da acusação, avalia muito positivamente a atuação da polícia e do Ministério Público no caso. “Não temos dúvida alguma quanto a denúncia, que foi bem feita porque também o conjunto probatório que a polícia preparou foi muito eficiente em medir a participação de cada um no crime”, avalia.
O advogado considera este um dos casos mais importantes da história do país, ao lado do julgamento de Suzane Richthoffen, condenada por matar os pais na casa da família, no bairro do Brooklin, na Capital, em 2002; o de Lindemberg Alves, que matou a ex-namorada Eloá Cristina Pimentel durante o mais longo caso de cárcere privado do país, ocorrido em 2008, em Santo André; e o júri do caso conhecido como crime da Favela Naval, ocorrido em 1997 em Diadema, quando o então soldado da Polícia Militar, Otávio Lourenço Gambra, atirou e matou o conferente Mário José Josino, crime que envolveu outros policiais que foram condenados por crimes de agressão, lesão corporal e tortura. “Poucos advogados tiveram a chance de atuar em crimes de tanta repercussão como esse. Certamente esse será um dos maiores juris do país”, avalia Gomes.
Defesa
O advogado encarregado da defesa de Anaflavia e Carina, Sebastião Siqueira Santos Filho, disse ao RD, que considera Anaflavia vítima e que ela poderia responder em liberdade. Ele também disse que houve falhas processuais que prejudicam suas clientes. “O certo é que há inúmeras irregularidades de procedimentos processuais, tanto é que impetrei um Habeas Corpus, entretanto, infelizmente, há ingerência, caso contrário, de acordo com a lei elas deveriam responder ao processo em liberdade”.
Santos Filho já atuou em caso de repercussão no ABC; em 23 de julho de 2003 o fotógrafo da revista Isto é, Luiz Antonio da Costa foi baleado e morto enquanto fazia a cobertura da invasão de um terreno que pertencia à Volkswagen, em São Bernardo. O advogado defendeu um dos envolvidos na morte do profissional de imprensa, que na época era um adolescente de 15 anos. “Aquele caso teve muita repercussão este, porém, é bem emblemático devido os familiares que foram vítimas, mas analisando os autos de maneira imparcial, verá que a Anaflavia fora vítima e envolvida”, diz o defensor.
Para o advogado a situação é mais favorável para Anaflavia do que para Carina. “Basta analisar as provas, em especial a reconstituição simulada dos fatos. Tanto é que a acusação não tem outras provas e arrolou quase que na totalidade os policiais e os peritos, sendo que a prova técnica prevalece sobre as testemunhas, além do que os policiais não presenciaram os fatos. É bem complexo, porém, é possível ter um desfecho positivo, em especial para Anaflavia”, resume.
A advogada Alessandra Jirardi, que representa os irmãos Jonathan Fagundes Ramos e Juliano Oliveira Ramos Júnior mantém a versão de que os rapazes entraram no plano apenas para roubar e não tinham a intenção de matar as vítimas. “Estou tranquila pois acredito realmente na versão deles, tanto que uma das minhas testemunhas é a avó deles, que tem três netos presos, o Jonathan, o Juliano e a Carina. Ela vai testemunhar em favor dos meninos porque a Carina sempre foi manipuladora. Eles estavam ali para o roubo, mas os planos das duas (Carina e Anaflavia) eram outros”, comenta a defensora.
A audiência virtual não agrada a advogada, ela acredita que pode prejudicar mais seus clientes. Ela também reclamou de procedimentos. “Fiz requerimento de produção de provas que foi negado, pedi acareação e foi negado também, o que não acontece com a acusação, portanto não há paridade de armas. Meus clientes certamente vão a júri popular, mas que eles paguem na medida da sua culpa”, sustenta Alessandra Jirardi.
A defesa dos dois irmãos arrolou 10 testemunhas, mas talvez elas não sejam ouvidas na audiência de setembro. “Estou estudando abrir mão da oitiva das testemunhas e também orientar os meninos a ficaram em silêncio, só se pronunciando no plenário do júri, porque lá sim vão poder falar para o conselho de sentença (jurados) que irá de fato julgá-los”, disse a advogada. Alessandra Jirardi disse que esse será um caso complicado, mas não o mais difícil da sua carreira. Ela atuou em outro caso de repercussão em outubro de 2019, ela defendia Luciano Santos Barros, acusado de participar de assalto ao aeroporto de Viracopos, em Campinas. Ela chegava ao local onde o rapaz estava acuado pela polícia e com reféns, quando o rapaz foi morto. “Eu estava com ele no telefone negociando para que se entregasse e a polícia o executou”, disse a defensora. “Aquele sim foi um caso difícil, esse agora só é mais pesado. Estou tranquila, porque gosto muito da advocacia criminal, ela é a minha vida”, concluiu.
Após a audiência, ou audiências caso não seja possível realizar todo o trabalho em um único dia, o juiz terá quatro possíveis decisões segundo o código de processo penal: absolvição sumária, desclassificação (para um crime mais leve), impronúncia (se não tiver comprovação da participação do réu) ou pronúncia levando-os a juri popular onde sete jurados vão julgar os réus. Vinte e cinco nomes são definidos e é feito um sorteio, sendo que cada advogado pode rejeitar três pessoas. O juri só será marcado após a audiência e pronúncia.