Partidos de diferentes matizes ideológicos rejeitam ser obrigados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a garantir, proporcionalmente, recursos do fundo eleitoral – e espaço no horário de propaganda no rádio e na TV – para candidatos negros e negras. As legendas argumentam que a medida em discussão na Corte eleitoral fere a autonomia partidária na hora de distribuir o dinheiro usado nas campanhas. A preocupação vem sendo debatida reservadamente entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e integrantes do tribunal.
“Só espero que o TSE não esteja legislando. O respeito às instituições democráticas é fundamental”, disse Maia, num recado de que a classe política não deve concordar com uma nova regra criada pelo TSE às vésperas das eleições. O tema voltará à pauta do tribunal no dia 20. No centro da disputa estão R$ 2 bilhões em recursos públicos para o financiamento das campanhas de vereador e prefeito neste ano.
A discussão começou em junho com uma consulta ao TSE feita pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que pediu ao tribunal para estabelecer uma cota de 30% de candidaturas negras em cada partido. A medida foi rejeitada pelo relator do caso e presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, para quem uma iniciativa nesse sentido depende do Congresso. O ministro, no entanto, acolheu outro pedido da parlamentar, de que o dinheiro do fundo eleitoral e o tempo de rádio e TV sejam divididos na mesma proporção de candidatos negros e brancos.
“O partido não tem ainda uma posição. Sou simpático à ideia. Com duas ressalvas. O TSE não pode legislar, e isto é matéria legislativa. E para esta eleição correríamos o risco de termos ‘laranjas negras'”, afirmou o presidente do Cidadania, Roberto Freire.
No dia 3, a própria Benedita apresentou um projeto de lei, assinado por outros 33 deputados do PT, propondo a reserva de vagas para pretos e pardos nas chapas ao Legislativo, em patamar equivalente à proporção da população de cada Estado. Além disso, quer que, dos 30% de recursos destinados a campanhas de mulheres, ao menos 50% financiem negras. A divisão do tempo de rádio e TV seguiria a mesma divisão.
O presidente do PDT, Carlos Lupi, também defende que o assunto deve ser tratado pelo Congresso. “Somos a favor de cotas, que possam resgatar a dívida da sociedade para com nossos irmãos negros. Preferiria que fosse por meio de uma lei”, disse Lupi.
A maioria dos dirigentes partidários, no entanto, prefere não se manifestar publicamente sobre o assunto, sob o risco de ser tachada de descomprometida com a construção de uma agenda de igualdade racial na política. Mas a reportagem apurou que há resistência no Republicanos, no DEM e no PSD. Outras siglas dizem que ainda vão discutir o assunto – caso de PTB e PL – e, por isso, preferiram não comentar.
“A lei não pode ser ferramenta de estimular o aviltamento para criação de cotas de qualquer natureza. Se isso for determinante, não venham amanhã questionar que candidatos A ou B tiveram votações pífias”, criticou o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE).
Sub-representação
No ano passado, o Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que, enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal tiveram receita igual ou superior a R$ 1 milhão, entre pretos ou pardos, 2,7% receberam pelo menos esse valor.
Embora correspondam a mais da metade dos habitantes do País, os brasileiros negros são sub-representados no Legislativo. Pretos e pardos eram 55,9% da população em 2018, mas representam 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos há dois anos, conforme a pesquisa. Dos vereadores eleitos em 2016, 42,1% eram pretos e pardos.
Para o cientista político Cristiano Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a distribuição proporcional do dinheiro é essencial para garantir candidaturas viáveis de negros. “Uma parte da recusa de caciques de aceitar é porque isso vai diminuir o poder que as mesas diretoras e os presidentes de partido têm sobre a própria legenda.”
A legislação atual não prevê obrigatoriedade para que os partidos lancem um número mínimo de candidatos negros. Ao suspender o julgamento em junho com um pedido de vista (mais tempo para analisar), o ministro Alexandre de Moraes, do STF, apontou o risco de a reserva de recursos para negros provocar uma retaliação dos partidos. “Por não existir um mínimo legal de candidaturas, seja de mulheres negras, seja de homens negros, em tese, haveria a possibilidade de não se admitir mais candidaturas”, afirmou.
Para a advogada Marilda Silveira, especialista em Direito Eleitoral, a divisão proporcional dos recursos entre candidatos negros e brancos é “justa e necessária”. Ela, no entanto, concorda com Moraes. “A obrigação de dividir os recursos proporcionalmente sem um porcentual mínimo de candidatos negros dificulta a afirmação certeira de que essa decisão levaria a um melhor desempenho dos negros.”
Falta de recursos é principal entrave para candidatos negros
Sem financiamento ou apoio partidário, iniciativas de candidatos negros ficam pelo caminho. A enfermeira Rita Manuela se lançou ao cargo de deputado federal pelo Patriota em 2018, mas, embora a sigla tenha dado aval para que seu nome fosse às urnas, a candidatura não foi contemplada na divisão do fundo eleitoral. “Entrei zerada e saí zerada.” Do partido, ela recebeu apenas os serviços de assessoria e consultoria contábil, estimados em R$ 400.
Para Rita, o Patriota a colocou na disputa apenas para cumprir o número mínimo de mulheres, mas que, caso ela fosse uma candidata branca, a situação poderia ter sido diferente. “Mulheres negras recebem menos, têm menos participação e menor avaliação de viabilidade (eleitoral)”, afirmou ela, que desistiu da eleição. Procurado, o Patriota não se manifestou até a conclusão desta edição.
A situação de Rita se repete em outros partidos. Candidato a deputado estadual no Rio pelo PDT em 2018, o cientista social Vitor Del Rey disse que desistiu da campanha “antes mesmo de começar” porque não recebeu apoio do seu partido. “Não tínhamos dinheiro para financiar, cheguei num momento em que eu tinha mais dívidas que dinheiro para arrecadar”, relatou. Segundo o TSE, ele não recebeu recursos do partido para fazer campanha. “O fato de eu ser negro, somado ao de não ter padrinhos e histórico político, contribuiu para a falta de verba vinda do partido.”
O PDT afirmou que a gestão da verba partidária é “uma deliberação interna do diretório regional, priorizando candidatos a presidente, governadores, senadores e deputados federais”. Segundo a sigla, os critérios para a distribuição de verba “vão de tempo de filiação a efetiva participação na organização do partido”.