Violência doméstica piora e aumenta demanda para recuperação de agressores

Programa de reeducação para homens agressores, mudou das reuniões presencias para encontros virtuais e o resultado foi positivo. (Foto: Rede Social)

A pandemia da covid-19 trouxe muitas mudanças e consequências para a sociedade, não apenas pela perda de vidas, empregos e renda, mas a necessidade de isolamento e de mudanças no convívio. Um dos efeitos tem sido a violência doméstica. Os números ainda não comprovam o aumento de casos, até porque estima-se que haja muita subnotificação de ocorrências, mas a percepção é que os episódios de violência contra a mulher se tornaram mais violentos. Por outro lado, o programa E Agora José, que funciona em Santo André numa parceria entre o Judiciário e a ONG Entre Nós no atendimento e recuperação dos homens violentos, não tem atendido toda a demanda por conta da suspensão do funcionamento da Central de Penas e Medidas Alternativas, órgão vinculado a Secretaria de Administração Penitenciária.

De acordo com a juíza Teresa Cristina Cabral Rodrigues, titular da 2ª Vara do Crime e do Anexo de Violência do Fórum de Santo André, a pandemia, e principalmente a crise econômica resultante dela, agravaram os casos. “Não temos como afirmar se aumentou a violência contra a mulher durante a pandemia, o que se sabe é que a pandemia aumentou a vulnerabilidade social e esse é um fator que gera mais violência doméstica. A mulher também tem mais dificuldade em denunciar porque as escolas e outros equipamentos estão fechados, a rede pessoal da mulher diminuiu e aumentaram os fatores de risco”, avalia. A percepção da juíza é de que os casos se tornaram mais graves, muito mais violentos e isso se deve muito a esse aumento da dificuldade de acesso à rede de proteção, aos serviços especializados.

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Tereza Cristina considera que a violência doméstica não tem uma ligação direta com o poder aquisitivo da família, pode acontecer em lares ricos ou pobres. Afirma que tem mais a ver com a forma com que os homens aprenderam a se relacionar. “O que percebemos é que a mulher em situação de maior vulnerabilidade tem mais dificuldade em denunciar. A maioria das vítimas é pobre e negra, a incidência em mulheres brancas é menor”, afirma.

Destruição da comunicação

Nem a digitalização das atividades, que avançou com a pandemia, trouxe mais facilidade de acesso a canais de redes de proteção e denúncia para a maioria das mulheres, segundo a juíza de Santo André. “A denúncia hoje pode ser feita, em alguns casos, até pelo WhatsApp, mesmo assim a mulher mais vulnerável continua com dificuldade para acessar a rede de proteção. Principalmente as mais vulneráveis não têm acesso à internet, e elas são muitas, e mesmo que tivesse uma forma de se comunicar, o celular é, em geral, a primeira coisa destruída na situação de violência doméstica”, comenta Teresa Cristina.

Homens

Sobre o programa que atende homens que praticaram violência, numa medida socioeducativa de suspensão de pena, a juíza diz que é instrumento de transformação social. “Ele (apenado) tem que ter a capacidade de se dispor à adaptação. Eu avalio bem o projeto, não tinha a pretensão de achar que resolveria completamente o problema, mas o resultado é bom”, afirma.

Dos cerca de 300 homens que participaram do programa desde a criação em 2014, apenas dois reincidiram. “Foram dois casos de homens que quebraram a medida protetiva, que voltaram duas vezes para o programa, mas não conseguimos resultado bom com eles, pessoas muito fechadas”, lamenta Flávio Urra, coordenador do programa e psicólogo.

O programa E Agora José funciona por encaminhamento do fórum dos casos de violência. São grupos apenas de homens, inclusive os facilitadores que são todos voluntários. O trabalho consiste em duas entrevistas iniciais, depois 26 encontros regulares, durando em média um ano e oito meses. Segundo Urra, nos primeiros 7 a 10 encontros os homens são mais resistentes, depois se abrem mais e apresentam resultados. “Por isso, fazemos as duas entrevistas iniciais, porque quando eles chegam estão muito revoltados, se dizem vítimas, não conseguem ver que cometeram um crime e que não deveriam estar ali, mas ao final o discurso é bem diferente”, comenta o psicólogo. Apenas os casos menos graves, com penas de até 2 anos têm a possibilidade de suspensão da pena com a conversão para a medida socioeducativa.

Por conta da pandemia, a roda de cadeiras desse trabalho com os homens sofreu mutação para uma roda virtual de conversas. Segundo Urra, o resultado foi surpreendente. “O homem não costuma se abrir muito ou demora para isso. No ambiente virtual parece que se sentem mais confortáveis para falar, já que não tem outros homens na frente dele, no máximo uma janelinha na tela, então ele se abre mais, tivemos até quem chorou, coisa que não acontecia antes”, comenta.

Os casos que ocorreram na pandemia ainda não chegaram aos grupos de ajuda. Isso porque a Central de Penas parou no período, então quem está no programa é de casos ocorridos antes da covid-19. “Tivemos uma conversa com a juíza e ela vai passar a nos encaminhar casos mesmo antes deles passarem pela Central; temos uma fila de espera. Semana que vem vamos receber casos mais novos”, relatou Flávio Urra.

Machismo

O sucesso do programa atraiu a atenção de pessoas que não estavam envolvidas em casos de violência, mas que gostariam de participar dele para se conhecer melhor e desconstruir conceitos machistas, por conta disso foram abertas inscrições para esse novo público. “Tinha muita demanda, mas até então a porta de entrada do programa era a polícia, aí resolvemos criar grupos abertos e cerca de 150 homens se inscreveram, 20 já entraram. É preciso ter uma certa força porque o programa mexe com coisas nossas, que muita gente prefere não mexer, pois forçamos a rever práticas machistas”, explica.

Segundo Flávio Urra, que começou esse trabalho com homens autores de violência 10 anos antes do projeto se tornar realidade em Santo André, o machismo está cada vez mais acuado com a mulher menos disposta a aceitar a violência. “No coletivo o homem tem uma situação de privilégio, de poder, tem melhores cargos, ganha mais, porém no individual ele não vai ter esse poder, com isso se sente oprimido, rejeitado, então se levanta como se tivesse o direito a um poder que não tem. Não há um limite estabelecido, esse limite é a mulher quem dá. Tem algumas que sofrem por anos e aceitam, outras no primeiro grito já denuncia”, conta. Para Urra, a pandemia também é um estopim para novos casos. “Da forma como a gente é criado para exercer o papel machista, com a crise econômica se cria um campo propício para a violência”, completa.

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